Grupo, que surgiu da luta contra os manicômios, socializa deficientes
Adriana Carranca - O Estado de São Paulo
O ator Bruno Cordeiro, de 19 anos, chega ao teatro antes dos demais. Entrega seu remédio à diretora executiva, Claudia Alonso. "É para eu tomar às sete, tá?" E segue apressado para o camarim. Ao lado de outros 20 atores, ele estreia sua quarta peça, Só(is) Amarelos, hoje, no teatro do Sesc de Santos, no litoral paulista. Portador de uma síndrome, Bruno é tão dedicado ao papel e focado na interpretação - ele faz o folclórico boi-bumbá - que, no ensaio, se esquece de tudo. Por isso confere a função do remédio à Claudia, psicóloga, atriz e adorada pelos alunos das oficinas da Associação Projeto Tam Tam.
O trabalho surgiu há 20 anos da luta antimanicomial e se transformou em fenômeno na Baixada Santista e exemplo de projeto de inclusão social. Mas Claudia e o arte-educador Renato Di Renzo, criador da associação, têm horror à expressão inclusão. Isso porque suas aulas não fazem distinção de ninguém. Recebem atores amadores e profissionais, crianças, jovens, adultos, portadores de necessidades especiais ou não. "Meu teatro, se é bom, é porque é bom. Não interessa se tem gente de cara feia ou bonita", diz Di Renzo. O trabalho atende 140 pessoas em diferentes oficinas e projetos e é voluntário.
Para angariar fundos, eles abriram as portas do pequeno espaço cedido em um canto do Teatro Municipal de Santos. Decorado com objetos doados e reciclados, o lugar se transformou em espaço lúdico, que chega a atrair 2,5 mil pessoas por mês às sextas e sábados em uma balada animadíssima, que começa às 22 e vai até as 3 horas. Num escuro teatro municipal, com ares de abandono, o visitante descobre vida atrás das cortinas do Café Teatro Rolidei. Ali se resgatou o teatro de arena - todo sábado, o capítulo de uma novela é interpretado ao vivo. Há música, dança e fantasias. No meio da noite, já não se sabe quem é público, ator, voluntário ou aluno. São todos iguais, como no palco.
Vinte alunos do Tam Tam, entre eles nove portadores de necessidades especiais, acabam de voltar de Portugal, onde se apresentaram em um festival de teatro, com a Só(is) Amar-Elos, que mistura dança, música, mímica e arte cênica. O figurino foi produzido a muitas mãos, por pais de alunos,voluntários e até o público do Rolidei.
"Com o teatro, minha filha tomou consciência dela própria, adquiriu mais respeito pelo outro e aprendeu a controlar as emoções", diz Elisabetre Pillilini, mãe da atriz Francisca, de 16 anos, que esteve em Portugal. "A síndrome de down nunca a impediu de nada." Questionada se gosta de teatro, Francisca abre um sorriso largo: "Fiquei muito mais feliz da minha vida!"
"Esse tipo de grupo não é frequente, mas é muito querido", diz o diretor do Sesc-SP e agitador cultural, Danilo Miranda. "Ele lida com a diferença da forma mais profunda e radical possível justamente porque derruba a barreira do diferente."
O encontro da arte com a loucura, uma profecia Adriana CarrancaPara Renato Di Renzo, entrar na Casa de Saúde Anchieta, o antigo manicômio de Santos, conhecido como "casa dos horrores", foi antes de tudo um resgate da infância, uma reconciliação com a própria memória. O menino se impressionava com os gritos vindos de trás dos muros altos no fim da Rua Princesa Isabel, onde cresceu. Curioso, rodeava o hospício de bicicleta enquanto imaginava cenas com os sons que vinham de lá. Os colegas zombavam: "você vai acabar ali". "E acabei", brinca.
Renato foi convidado em 1989 pelo então secretário de Saúde de Santos David Capistrano, um articulador da reforma psiquiátrica no Brasil, para iniciar um trabalho de arte educação no Anchieta. "Era como se os colegas de infância tivessem feito uma profecia. Só que encontrei ali algo muito pior do que eu jamais havia imaginado. O horror era grande. De gente manchada, machucada, borrada."
Ele pediu às internas que lhe mostrassem o hospício. "Cada descascado de tinta, cada sujeira, a marca de um arranhão na parede, tudo tinha uma história. Era a arquitetura funcionando como suporte de uma caligrafia da loucura, da tortura, da dor", lembra. Daí surgiu a ideia de um teatro de arena. "É como novela", explicou. Ele marcou o primeiro ensaio para o dia seguinte "às 8 horas, nessa parede". E se emocionou ao encontrar os internos emparedados lado a lado, esperando por ele na hora marcada.
Cada canto do hospital foi renomeado e virou cenário. Encenou-se Romeu e Julieta. Do imaginário do grupo surgiu novo personagem: um cavalo falante, que passava o texto para Romeu, interpretado por um jovem com crises de amnésia. "Aquilo surgiu deles. Eu só provocava. E eles criavam. Na última cena, o cavalo receita remédios. Percebi que ia surgindo ali uma fala, uma crítica, a reprodução do sistema."
A administração do hospital acompanhava, desconfiada. "Eles respeitavam o trabalho, mas não entendiam. Não tinham noção da força da arte para cutucar o ser humano. E não era arte para ?ajudar?, mas arte. Porque existe uma violência por trás da bondade, na forma da exclusão. Eu ajudo porque é correto, mas não me relaciono com o outro. Ele não percebe que o investimento nessa relação é nele próprio." Dois anos depois, o Anchieta foi desativado e Renato fundou a Associação Projeto Tam Tam que trabalha voluntariamente com portadores de deficiência e outros públicos.
Colaboração: Fernando Bueno
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